O Caos depois do desastre

Fico angustiado quando leio quase que diariamente sobre a catástofre do Haiti.
Resolvi postar um relato que li e achei bastante elucidante...



Sob as trevas da noite o pavor aumenta. Os raros focos de luz são dos faróis de carros, dos postes de quartéis com geradores e das fogueiras... Assustadoras fogueiras alimentadas por escombros e corpos. Do Hospital-Geral de Porto Príncipe emergem urros de dor de pacientes. Com os primeiros raios de sol chega a notícia do resgate de uma criança com vida e a esperança renasce. Abarrotado pelo volume colossal de feridos em estado grave, o Hospital-Geral tornou-se o maior centro de amputação de Porto Príncipe. Um lugar de horrores, onde se aguarda a vez de morrer, ao lado de cachorros, lixo e do odor onipresente da gangrena. No pátio do hospital, feridos tentam sobreviver em colchonetes, ao ar livre e sob tendas. Num deles, Widlyn Pierre, uma jovem e bela haitiana, grita de dor.
Em Porto Príncipe, os vivos dormem nas ruas; os mortos, nos escombros. Os números da catástrofe já parecem não fazer nenhum sentido. Foram 75 000 corpos lançados em fossas, mas quem os contou? Praticamente inexistente, o governo anuncia planos de transferir 400 000 desabrigados da capital para acampamentos organizados nas imediações da cidade destruída. Como? Quando? Por enquanto, dorme-se sob o céu negro e o calor asfixiante do Caribe, sentindo-se o cheiro fétido das fogueiras humanas. São os momentos mais perigosos para a sobrevivência dos haitianos, quando os mais fortes encontram a cumplicidade da noite para atacar os mais fracos. Brigam por comida, água, remédios – ou mesmo por bonés e óculos velhos, o tipo de farrapo que alguns haitianos ainda possuem. Há troca de socos até por restos dos destroços. Nenhum haitiano parece aceitar que outro tenha mais do que ele, ainda que esse mais se resuma a lixo. Em regiões miseráveis, como o bairro de Delmas, os desabrigados acampados nas praças e ruas improvisaram fogueiras, feitas de tudo o que se pode encontrar: lixo, corpos, pedaços de madeira. Em outras, como Bel Air, a escuridão da noite mistura-se com a poeira dos destroços ainda pairando no ar. O Haiti, que sempre viveu próximo da barbárie, agora se queima por completo nela.
Quem tem parentes ou um fiapo de esperança fora da capital se amontoa em ônibus ou barcos superlotados, num êxodo esfarrapado rumo ao interior. A maioria não tem nada e vaga pela cidade. A sobrevivência agora se dá nas ruas, na grande lixeira na qual se tornou a capital haitiana. Praças viraram favelas, campos de várzea transformaram-se em camas. Os poucos motoristas andam na contramão, buzinam sem motivo. Emergiram duas classes de haitianos: os tendistas, aqueles cidadãos mais afortunados, que conseguiram estender seus pertences em uma lona nas praças, e os demais, que dormem direto no asfalto ou em calçadas. Os tendistas levam vantagem na luta pela sobrevivência. Por concentrarem grandes massas humanas, estão mais protegidos dos ataques de gangues – e se tornam mais visíveis aos voluntários que distribuem água e comida.

Porto Príncipe queima diferente em diferentes lugares. A Praça Boyer, em Pétion-Ville, bairro menos devastado da capital, é um condomínio classe A para os padrões haitianos pós-terremoto. Ali, como em outras praças, há crianças e bebês chorando, filetes de esgoto nas calçadas, dejetos. Há, porém, vendinhas de batata e banana verde, que podem ser compradas por poucos gourdes, a moeda haitiana. Alguma água chega por intermédio de doações internacionais. As praças do centro da cidade, região onde só há ruínas, oferecem menos regalias aos haitianos. De longe, a Champ de Mars, que fica diante do que restou do Palácio Presidencial, assemelha-se a uma imensa feira de ambulantes, tal a profusão de lonas e barracas coloridas. De perto, é um pestilento amontoado humano. Há crianças tomando banho com água do esgoto, mães prostradas em pedaços de papelão, fezes e urina pelo chão, cachorros e porcos revirando o lixo a céu aberto. Vez ou outra, explodem discussões e brigas – sempre por comida.
A fome e a sede levaram multidões de haitianos a invadir lojas, supermercados, casas. Moralmente, parece existir uma divisão: pegar comida, água ou qualquer coisa para colocar entre o corpo e o mundo devastado onde vivem é aceitável. Quem não faria o mesmo no maior de todos os estados de necessidade? Já saquear com o objetivo de revender é condenável e pode ser punido com a justiça das ruas ou os tiros dos policiais que, aleatoriamente, tentam estender um esgarçado véu de ordem sobre o caos. Alguns policiais usam lenços ou máscaras no rosto – proteção contra o cheiro que tudo invade e garantia de anonimato. Num supermercado que havia desabado no bairro de Delmas, pessoas desesperadas disputavam os destroços com uma retroescavadeira. Bailavam a dança da fome. Os mais atirados arriscavam-se entrando nos escombros, sob o risco de novos desabamentos, em busca de alimento e água. Segundos depois, a escavadeira retomava seus trabalhos, e os haitianos afastavam-se às pressas, escorregando pela pequena montanha de destroços, como se fossem moscas.

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